A Literatura é um campo científico extremamente fértil e curioso em que as mais variadas emoções humanas são representadas, explanadas, sentidas. Através de palavras, é possível viver uma experiência que talvez nunca lhe aconteça ou mesmo que já lhe ocorreu, mas por algum motivo, não foi capaz de traduzi-la em frases. Uma experiência em comum, entretanto, é a morte. Mesmo sem perder pessoas próximas, com certeza se percebe a onipresença da Senhora do Exício diariamente, até porque, assim como a vida, ela está em todas as coisas, trazendo física ou subjetivamente, um encerramento.
É essa a temática que permeia os contos de Rodrigo Melo Franco de Andrade, reunidos em seu único livro literário, “Velórios”, publicado em 1936. A obra se movimenta de maneira muito sublime sobre o espectro da morte, trazendo personagens ligeiramente complexos, expondo camadas da sociedade brasileira do início do século XX.
Em “D. Guiomar”, o conto de abertura, por exemplo, Andrade cria uma narração para acompanhar um trecho da vida de Guiomar, uma mulher de fibra que, além dos seus muitos filhos, tem que lidar com um marido… complicado:
Desde os primeiros tempos do casamento ele fora dado a mulheres, com a peculiaridade de aproximar da família as suas conquistas por meio de expedientes diversos. Quanto a isso Dona Guiomar nunca se iludiu […] Não lhe passava pela cabeça reclamar, porque a autoridade que o marido lhe impunha era de parte dela, pelo menos frente a frente. Pelas costas, porém, costumava censurá-lo com grande desenvoltura, ridicularizando aquelas manobras complicadas que ele empreendia para aproximá-las das rivais (p. 9-10).
É singular o fato de que, na década de 30, Andrade já coloque em cheque, implicitamente, a posição supostamente submissa das mulheres. Em outras palavras, o autor acaba manifestando uma personagem feminina que, embora se adeque às normas sociais, ela não está satisfeita com a situação. Quando um caso de Theotônio toma proporções públicas, com direito a escândalos, Dona Guiomar, então, se revolta não pela traição e sim, por ter seu nome manchado. Assim, ela questiona a filha mais velha se ela achava que deveria se suicidar. A pergunta sai em tom neutro, como se a consequência da morte fosse vindoura, previsível, esperada. A filha sequer se assusta. A morte parecia um tópico ordinário, não apresentava esse fantasma que nos assola com tanta severidade nos dias de hoje. Ali, pelas mãos de Rodrigo Melo Franco de Andrade, a morte se tornava apenas uma palavra, nada mais. Ela seria apenas o fim dado a uma experiência que já não nos serve mais. O alento da vida seria, daquela vez, ceifado pelo anjo que, diferente do anjo que decide parar de matar em “As intermitências da morte” de José Saramago, trabalha incessantemente, em todos os contos.
* A citação direta foi adaptada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, de 2009.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Rodrigo M. F. de (Rodrigo Melo Franco de). Velorios. Texto em uma coluna. Bello Horizonte: Os Amigos do Livro, [1936]. 152 p.